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COVID-19: É perturbador quando olham para você como possível contaminado

Perrone

21/03/2020 17h58

ESPCIAL NOVO CORONAVÍRUS*

Diário do isolamento

Atualizando o diário de meu isolamento desde que voltei na noite da última segunda de Assunção, no Paraguai, após cobrir o caso Ronaldinho Gaúcho.

Quarta-feira, 18 de março

Estava sentado, trabalhando, quando alguém tocou a campainha. Para não quebrar o isolamento, perguntei quem era e tentei saber o assunto. A voz do outro lado estava aflita, falava algo incompreensível sobre uma creche.

O sujeito tinha tanta pressa que atropelou meu raciocínio. Acabei abrindo a porta, mas ainda consegui manter uma distância razoável do inesperado visitante. Ele permaneceu do lado de fora.

Era um dos faxineiros do condomínio. Ele dizia que "o pessoal da creche está na portaria esperando doação". O funcionário subiu para dar o recado porque meu interfone não está funcionando.

"Que creche?", preguntei surpreso.

"A creche do outro lado da rua. Eles estão lá na portaria esperando você levar as doações", respondeu ele.

Expliquei que eu não tinha  prometido nada. Aliás, nem sabia que existe uma creche na rua. Em outra situação, teria descido e tentado colaborar de alguma forma, desde que confirmasse se tratar mesmo de uma creche.

Meu interlocutor não assimilou que eu não tinha ideia do que ele estava falando. Como vi que ele estava disposto a promover uma espécie de condução coercitiva para me levar até a portaria e fazer uma acareação com quem esperava pela suposta doação, não tive alternativa a não ser dar um passo para trás e fazer o anúncio solene: "voltei do Paraguai, estou em isolamento, não posso sair daqui".

A fisionomia do cara, um boa praça, mudou. Deu para perceber a tensão em seu rosto. Imediatamente ele se afastou com passos rápidos para trás enquanto repetia: "você não prometeu nada para creche?".

Fechei a porta e senti o golpe. A sensação de ver alguém se afastando de você, com medo de ser contagiado por você, é perturbadora.

Quinta-feira, 19 de março

Mais uma vez precisei sair do apartamento para ir na portaria buscar mantimentos comprados pela internet.

Bastou botar o pé na área externa do condomínio para o faxineiro, aquele da creche perceber a minha presença. Ele estava de saída, mas teve tempo para soltar, sorrindo,  um berro: "olha o corona".

Dei risada, mas foi constrangedor. Não por causa da brincadeira dele, mas por estar em uma área comum do condomínio sabendo que recentemente voltei de uma viagem ao exterior. Eu não deveria estar lá. Esse é um problema que não sei como resolver.

Sexta-feira, 20

Foi dia de descobrir que músicos, cantores, atores e agentes culturais estão se mobilizando para oferecer entretenimento pela internet para quem está evitando sair de casa. Tem muita coisa legal rolando. Mais pra frente, com calma, pretendo falar sobre o assunto.

Também foi dia decidir não abrir alguns vídeos suspeitos recebidos por mensagem de WhatsApp. Não sei por qual motivo, mas o isolamento ressuscitou o famigerado gemidão. Caí nessa diversas vezes nos últimos dias.

*Além dos habituais posts publicados neste blog, a partir de hoje, por tempo indeterminado, esse espaço também será dedicado a temas relacionados ao novo coronavírus.

Sobre o Autor

Ricardo Perrone é formado em jornalismo pela PUC-SP, em 1991, cobriu como enviado quatro Copas do Mundo, entre 2006 e 2018. Iniciou a carreira nas redações dos jornais Gazeta de Pinheiros e A Gazeta Esportiva, além de atuar como repórter esportivo da Rádio ABC, de Santo André. De 1993 a 1997, foi repórter da Folha Ribeirão, de onde saiu para trabalhar na editoria de esporte do jornal Notícias Populares. Em 2000, transferiu-se para a Folha de S.Paulo. Foi repórter da editoria de esporte e editor da coluna Painel FC. Entre maio de 2009 e agosto de 2010 foi um dos editores da Revista Placar.

Sobre o Blog

Prioriza a informação que está longe do alcance das câmeras e microfones. Busca antecipar discussões e decisões tomadas por dirigentes, empresários, jogadores e políticos envolvidos com o futebol brasileiro.