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Testando o VAR: entenda as armadilhas que rondam o árbitro de vídeo

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23/02/2019 04h00

Foto: Simon Plestenjak/UOL

"Vou ser o seu VAR, prepare-se porque não entendo nada de arbitragem. Vai dar confusão. Se depender de mim, nós vamos apanhar". Pelo fone, escuto o juiz responder: "não tem problema, vamos apanhar juntos, então". Dessa forma, na última quinta (21), iniciei minha experiência no simulador de árbitro de vídeo da Federação Paulista, já preparando o espírito do árbitro que me acompanharia no teste. Ele estava em outro local, em frente a um monitor igual aos que vemos à beira dos gramados. E eu numa sala, diante da parafernália responsável pelo sistema criado para ajudar os juízes durante os jogos. O recurso será usado a partir dos mata-matas do Campeonato Paulista e em todo o Brasileirão deste ano.

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Os minutos seguintes ao sincero alerta feito por mim mudariam meu pensamento em relação ao VAR e sobre o que esperar de sua utilização. O negócio é muito mais difícil do que eu imaginava. Minha atuação começou com a cobrança de um tiro de meta. De cara, sou advertido pelo instrutor: "O vídeo é lá em cima, Ricardo". Com duas telas na minha frente, sem contar às usadas pelo árbitro assistente de vídeo e pelo operador de equipamento, eu me confundi. Estava acompanhando o jogo pelo monitor que mostra os lances com um atraso de três segundos. Ele serve para tirar dúvidas depois que a jogada aconteceu. Nesses casos, o assistente segue de olho na partida ao vivo.

Foi desfazer a gafe, bater o olho na tela certa e ver uma falta no meio-campo para eu sair da minha zona de pequeno desconforto. Entrei numa de grande incômodo. Primeiro vem a dúvida. Foi algo relevante para eu parar o jogo? E se eu parar e não for nada? Já pensou, o estádio inteiro esperando (no mundo real eram cerca de 20 pessoas ligadas à arbitragem e envolvidas na no treinamento de VAR da FPF).

Com frio na barriga, decido impedir a continuação do jogo, pois se a partida seguir por muito tempo não dá mais para parar. Aí começa a segunda etapa da tortura psicológica. Lembrar de todo procedimento padrão. Apertar o botão vermelho que aciona o comunicador, pedir para o juiz não dar sequência ao jogo, e avisar que o lance está sendo checado.

"Paralisa, por favor. Estou checando aqui", anuncio em tom solene, tentando imaginar como um árbitro falaria e apertando com força o botão vermelho. Minutos antes, Ednilson Corona, presidente da comissão de arbitragem da federação, havia me explicado que a comunicação é uma das principais armadilhas para o VAR. "Estamos trabalhando muito para melhorar a comunicação. É um dos principais desafios. Você precisa ter certeza que foi claro para o árbitro. Já pensou se você fala 'não foi pênalti', mas, por algum problema, o comunicador pega a fala depois do começo e o árbitro só ouve 'foi pênalti'? Imagina a confusão", explicou Corona.

Ednilson Corona explica que comunicação é um dos principais obstáculos do VAR. Foto: Simon Plestenjak/UOL

Por isso apertei o botão vermelho como se ele liberasse oxigênio na sala. Estava tão concentrado nele que me esqueci do verde, instalado ao lado. Esse outro deve ser apertado cada vez que um lance duvidoso é visto. Serve para marcar as jogadas que podem precisar de revisão. Facilita a vida do operador de 'replay', sentado ao meu lado direito (na esquerda está um assistente para ajudar principalmente nos lances de impedimento). Nos jogos do Estadual serão dois auxiliares chamados de AVAR (assistentes de VAR).

"Preciso que você defina pra mim um ponto de contato para essa falta. Onde você acha que ela aconteceu de fato?", pergunta o operador, já que eu não marquei o lance. Olho pra tela dele e vejo vários quadrinhos, cada um com um instante da jogada. Penso: 'como vou saber? Não sei mexer nisso"'.

De novo, relembro da entrevista concedida por Corona pouco antes. "Outra dificuldade é a falta de prática dos árbitros com equipamentos de vídeos. São muitas câmeras à disposição, mas é difícil pra quem não está acostumado saber qual é a melhor para cada jogada. O operador ajuda, mas não em tudo. Se ele começar a opinar é influência externa na arbitragem, o que é proibido", disse o presidente da comissão de arbitragem. No Campeonato Paulista serão até 19 câmeras por partida.

No meu caso, o operador foi voltando o lance até o começo da jogada (e o tempo passando, imagina no estádio, todo mundo esperando. Ali era "só" uma tropa experiente na arbitragem esperando e provavelmente pensando: 'esse cara não pode criticar árbitro nunca'). Enfim, tive convicção do que vi e fui de novo no botão vermelho. "Por favor, reveja o lance porque o número 12 de branco (sou corrigido pelo instrutor, era 42 na verdade) pisou no de azul". Depois de cerca de 20 segundos, sou orientado a informar ao juiz qual a melhor imagem que temos. Tem mais essa, tenho que sugerir a câmera com melhor ângulo pro árbitro. E o tempo passando.

Ele não tinha visto um pisar no outro. Havia dado apenas amarelo para o atleta de azul e marcado a falta dele. Com a minha ajuda, apesar da falta de jeito, ele expulsa corretamente o jogador de branco, mantém a falta e o amarelo para o atleta de azul. Na verdade é uma simulação, analisamos apenas a gravação de uma partida. Do momento em que avisei o juiz até a decisão ser tomada se passaram três minutos e 31 segundos. Isso num lance relativamente simples.

Terminado o desafio, retiro o fone e relato minha experiência para o estafe de arbitragem da FPF: "mesmo com toda essa tecnologia é muito difícil". É muita coisa pra prestar atenção. Várias telas, áudio no fone de ouvido, protocolo a seguir. E os árbitros de verdade que são convocados para trabalhar como VAR têm uma outra armadilha para tentar evitar. "Eles estão acostumados a tomar decisões, mas aqui eles só vão auxiliar. Precisam treinar para se adaptar à essa nova situação", explica Corona.

Brincando de árbitro de vídeo entendi também porque só em quatro situações o VAR pode entrar em cena: dúvidas sobre se foi gol, pênalti, lance para expulsão e cartão mostrado para o jogador errado. Com tantas câmeras de olho em tudo, acontece muita coisa que o árbitro no campo não vê. Se quem está com a tecnologia nas pontas dos dedos resolver corrigir tudo, o jogo não vai andar.

Foto: Simon Plestenjak/UOL

E mesmo com o universo de possibilidades reduzido, ainda há muita chance de erro. As decisões têm que ser muito rápidas, a pressão é enorme, assim como é grande a quantidade de novas informações a serem assimiladas. Não é à toa que durante os treinamentos feitos pela Federação Paulista os escolhidos usam um aparelho que mede a frequência cardíaca no momento de tomada de decisões. Duas psicólogas avaliam e ajudam a preparar cada um.

Depois dos testes, a FPF vai definir quem assume cada função. Participaram dos treinos desta semana com o simulador 16 árbitros centrais de campo, mais seus auxiliares. Neste sábado (23) deve acontecer um teste com times das categorias de base do São Paulo no Morumbi. No dia seguinte está prevista uma simulação durante a partida do São Paulo contra o Red Bull. Os lances serão analisados pelo VAR, mas só para teste, sem contato com a equipe de arbitragem.

Também neste sábado, o Morumbi passará por uma vistoria a fim de ser homologado para o uso do árbitro de vídeo. Na próxima quarta será a vez do Allianz Parque. Neste estágio entra outra preocupação com o novo sistema. A segurança da equipe que trabalha grudada nos monitores. Se algum dos estádios não tiver um local apropriado, eles terão que se acomodar em containeres. O temor é de que torcedores descubram onde eles estão. Por isso, a ideia é não colocar identificação nesses locais.

Diante de todos os detalhes, a melhor definição é uma que já virou jargão entre os árbitros: "o VAR existe para tirar os elefantes que aparecem em campo. As formiguinhas vão continuar lá".

Sobre o Autor

Ricardo Perrone é formado em jornalismo pela PUC-SP, em 1991, cobriu como enviado quatro Copas do Mundo, entre 2006 e 2018. Iniciou a carreira nas redações dos jornais Gazeta de Pinheiros e A Gazeta Esportiva, além de atuar como repórter esportivo da Rádio ABC, de Santo André. De 1993 a 1997, foi repórter da Folha Ribeirão, de onde saiu para trabalhar na editoria de esporte do jornal Notícias Populares. Em 2000, transferiu-se para a Folha de S.Paulo. Foi repórter da editoria de esporte e editor da coluna Painel FC. Entre maio de 2009 e agosto de 2010 foi um dos editores da Revista Placar.

Sobre o Blog

Prioriza a informação que está longe do alcance das câmeras e microfones. Busca antecipar discussões e decisões tomadas por dirigentes, empresários, jogadores e políticos envolvidos com o futebol brasileiro.