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Covid-19: quarentena em comunidade tem futebol, baralho e obra

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25/03/2020 04h00

O fraco movimento de veículos no viaduto na região central de São Paulo por volta das 17 horas de terça-feira (24) denuncia que a cidade está num ritmo diferente. Ao lado dele, a pelada no campinho de terra no coração da comunidade do Moinho, próxima à região conhecida como Cracolândia, lembra um simpático feriado.

Mas, na verdade, é a primeira tarde da  quarentena que só não fechou o comércio essencial na capital paulista. Deveriam ser tempos de absoluto isolamento social para combater o avanço do novo coronavírus.

Foto: Ricardo Perrone/UOL

Do alto da janela de um edifício vizinho, os dez caras que mostram até mais disposição do que alguns profissionais, como todo bom peladeiro, parecem ignorar as orientações de prevenção contra a transmissão do vírus.

No momento em que não tocar o próximo virou regra de proteção à saúde, o jogo tem divididas e agarrões. Enquanto alguém vai buscar a bola rola até uma imitação de MMA entre dois amigos capaz de deixar o doutor Drauzio Varella sem ar, tamanha a transgressão às regras para evitar contágio.

Em volta do campo, uma turma que espera sua vez de jogar indica que mais gente na comunidade, colada a uma estrada de ferro ativa, trocou o isolamento pelo lazer.

Para completar o cenário de domingo no parque, um garoto passeia de bicicleta em volta do campo. Sem pressa, também passa por lá um casal.

Relativamente perto de onde se disputa a partida há um grupo jogando baralho numa mesa ao ar livre. Eles estão em frente do que parece ser um boteco.

Porém, nem todos na comunidade do Moinho estão em ritmo de folga. Bem próximo ao  viaduto tem gente dando duro. Homens estão descarregando um caminhão cheio de tijolos para tocar uma obra. O trabalho termina antes da pelada, que só se encerra quando acaba a luz natural.

A estreita rua principal, abarrotada de barracos, fica mais movimentada. É a vez de quem chega do trabalho com passo apertado atravessar a comunidade, que já foi alvo de pelo menos dois graves incêndios.

A galera do baralho resiste mais um pouco, numa troca frenética de jogadores. Às 20 horas eles já não estão mais lá.

 Ainda há movimento na rua, mas a comunidade está razoavelmente silenciosa. Um cão latindo aqui e uma criança gritando ali. O bar que praticamente todos os dias e noites toca forró no último volume parece ter dado um tempo, entrando no espírito da quarentena.

Baralho no lugar de quarentena

Por volta das 20h30, o silêncio é interrompido por um panelaço na região. São muitos os moradores de prédios na vizinhança protestando contra o presidente Jair Bolsonaro. Não dá para saber se parte do barulho vem da comunidade.

Apesar da sensação de tranquilidade demonstrada por moradores que desfrutavam a tarde ensolarada em meio à aglomeração de barracos, a situação das comunidades brasileiras têm sido alvo de preocupação de médicos durante a pandemia.

"Na minha opinião, sim, lugares que têm mais aglomeração de pessoas pela própria característica da comunidade merecem receber atenção especial a fim de minimizar os riscos de transmissão" disse ao blog Maria Luísa do Nascimento Moura. Ela é infectologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e do Controle de Infecção Hospitalar do Hospital Vila Nova Star".

A médica respondia se, em sua avaliação, as comunidades precisam receber atenção especial das autoridades em relação a informações sobre a prevenção contra o novo coronavírus.

Maria Luísa também explicou os riscos de contaminação a que ficam expostas pessoas que jogam futebol ou cartas durante a pandemia, como ocorreu na comunidade do Moinho.

"Qualquer ambiente que propicie aglomeração está sujeito a um maior risco de transmissão de coronavírus, isso porque o vírus é transmitido por gotículas presentes em secreções respiratórias que frequentemente são passadas por contato próximo ou por contato com superfícies contaminadas pelas mãos de pessoas infectadas. Sendo assim, atividades como jogar cartas e futebol, pelo contato próximo que as pessoas acabam tendo, também podem propiciar maior transmissão", analisou a médica.

Sobre o Autor

Ricardo Perrone é formado em jornalismo pela PUC-SP, em 1991, cobriu como enviado quatro Copas do Mundo, entre 2006 e 2018. Iniciou a carreira nas redações dos jornais Gazeta de Pinheiros e A Gazeta Esportiva, além de atuar como repórter esportivo da Rádio ABC, de Santo André. De 1993 a 1997, foi repórter da Folha Ribeirão, de onde saiu para trabalhar na editoria de esporte do jornal Notícias Populares. Em 2000, transferiu-se para a Folha de S.Paulo. Foi repórter da editoria de esporte e editor da coluna Painel FC. Entre maio de 2009 e agosto de 2010 foi um dos editores da Revista Placar.

Sobre o Blog

Prioriza a informação que está longe do alcance das câmeras e microfones. Busca antecipar discussões e decisões tomadas por dirigentes, empresários, jogadores e políticos envolvidos com o futebol brasileiro.