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'Não adianta preservar emprego e não preservar renda' diz Haddad sobre MP

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03/04/2020 06h52

Imagem: Vide Aguiar/Futura Press/Estadão Conteúdo

ESPECIAL COVID-19

Em entrevista exclusiva ao blog, Fernando Haddad criticou a Medida Provisória 936 assinada por Jair Bolsonaro. Ela permite, por meio de acordos individuais, redução de jornada de trabalho e dos salários e até suspensão dos contratos por no máximo dois meses durante o período de calamidade pública.

Para o candidato do PT derrotado no segundo turno da eleição presidencial de 2018, não adianta assegurar empregos durante a quarentena contra o avanço do novo coronavírus se a renda do trabalhador não for mantida.

Para o pós-pandemia, o ex-prefeito de São Paulo prevê um dramático cenário habitado por trabalhadores que mesmo empregados não têm poder aquisitivo para consumir e movimentar a economia. Estarão concentrados em pagar dívidas acumuladas durante o isolamento social.

Leia a seguir a entrevista feita por telefone na tarde desta quinta-feira (2).

Blog do Perrone – Vi um tuíte seu afirmando que foi trocada a MP da morte pela MP do coma. Gostaria que você explicasse melhor esse comentário.

Fernando Haddad – Aquela MP do domingo, que ele (Bolsonaro) revogou na segunda, ficou conhecida como MP da morte. O (jornalista) Vinicius Torres Freire chamou, todo mundo passou a chamá-la assim, porque ela  permitia ao empregador ficar quatro meses sem pagar salário e não tinha nenhum dispositivo de salvaguarda em relação ao empregado. Então, era uma verdadeira loucura. A grita foi tão grande que ele revogou por volta do meio-dia da segunda, uma coisa absurda. E agora veio essa. Essa tem aquela salvaguarda que aquela não tinha, que é o seguro desemprego. Mas, se você for ler corretamente a medida, você vai ver que, primeiro, é  um percentual do seguro desemprego. Segundo, mantém a lógica da MP anterior, de permitir que por sessenta dias o empregador não pague nada, e o empregado se socorre do seguro-desemprego até 70% do teto, que é R$ R$1.800. O que isso significa na prática? Significa que quem ganha mais de dois salários mínimos, quem ganha mais de um salário mínimo e meio vai ter um achatamento de renda nesse período que pode ser dramático, dependendo do salário da pessoa. O celetista que estiver nessas condições e ganhar mais do que um salário mínimo e meio vai ter um achatamento da renda que vai se estender no tempo e que vai ser tão maior quanto maior for o salário. (Isso) em função dos 70% do teto do seguro-desemprego . Então, imagine uma família que ganha R$ 3 mil, R$ 4 mil, R$ 5mil. Ela vai perder mais de 50% da renda. Entendeu?

BlogEntendi. Então, na sua opinião teria ficado melhor sem a limitação de 70%.

Haddad – Na verdade, o que eu acho que o governo deveria fazer é o seguinte. Na verdade, você trabalha 30 dias antes de receber. Não é isso?

Blog – É.

Haddad – Então, pro trabalhador é normal ele trabalhar antes de receber. Nós tínhamos  que inverter a lógica. O trabalhador não pode trabalhar. Não é por vontade própria. Como ele não pode trabalhar para evitar um imenso contágio que sobrecarregaria o sistema de saúde, e nós perderíamos inutilmente vidas que poderiam ser salvas, por que o problema é a vida que pode ser salva… Então, o que nós deveríamos fazer? Nós deveríamos inverter. A pessoa recebe primeiro e trabalha depois. Como você pode fazer isso? Primeiro, criando uma linha de crédito a perder de vista para as empresas poderem honrar a sua folha de pagamento, que pode ou não ser subsidiada em algum montante. O trabalhador fica devendo essas horas de trabalho que vão ser diluídas no pós-pandemia para recuperar uma produção que não pode ser realizada agora. Então, se nós vamos ficar 60 dias sem produzir nos setores não essenciais, nós temos que garantir que no pós-pandemia a gente reponha a produção. Então, o certo é você garantir a renda do trabalhador para que ele produza depois na lógica atual com sinal trocado. Hoje, ele produz para o empregador antes de receber. Nós temos que inverter isso. Ele tem que receber nos próximos 60 dias antes de produzir. Se fizermos uma coisa bem feita, o trabalhador daqui a 60 dias sai do isolamento e repõe as horas de trabalho. Portanto, a produção que não está sendo feita agora vai ser feita depois. O empregador vai ter renda para pagar o que ele tomou emprestado para pagar a folha. Você normaliza isso tudo. Então é você visar as atividades produtivas. Você tem a garantia de que vai ter um isolamento por 30 ou  60 dias, você garante o isolamento, achata a curva (de contaminação), trabalha para robustecer o sistema de saúde e quando sair do isolamento você está com as condições econômicas absolutamente garantidas para que você reponha o que não foi produzido nesse período. Imagine assim, a minha faxineira, o que eu vou fazer com ela? Vou pagar o serviço dela agora. E aí eu discuto com ela, no momento em que eu precisar de uma ajuda, sei lá, vou receber uma pessoa, eu acomodo a situação. Mas, não vou cortar o fluxo dela agora. Por que, se eu cortar, ela vai viver do que? Agora, como nem todo mundo tem liquidez, o governo tem que garantir a liquidez, para quem não tem dinheiro poder fazer isso.

Blog – Essa reposição de horas de trabalho não seria um pouco complexa?

Haddad – Não é complexa. Ela tem que ser condizente com o prazo do recurso que ele (patrão) receber. Vamos supor que ele recebeu uma injeção de recursos (do governo) de liquidez para dois meses de folha e tem dois anos para pagar. Se ele tem dois anos para pagar, o trabalhador também tem que ter dois anos para pagar (as horas de trabalho). Você alinha capital e trabalho com dois anos de diferimento. Para isso, você precisa de crédito. Então, o que o governo tem que garantir não é demitir ou cortar o salário. Isso aí vai deprimir a economia. Vai piorar as condições de retomada. Na hora que a gente quiser retomar, nós não vamos ter como retomar porque a pessoa física vai estar endividada. Ela vai estar em casa sem ter como pagar as despesas dela. Então, ela vai estar devendo para a companhia de energia elétrica, para a companhia de gás, companhia de telefone, ela vai estar devendo na padaria, vai estar devendo no banco, vai estar devendo. 

Blog – Mas o governo pode dizer: "estou prorrogando o prazo para pagamentos de impostos, de contas, estou mantendo empregos…".

Haddad – Mas é muito mais caro você emprestar para cada indivíduo que está na pior do que você pegar as unidades produtivas, que são as empresas, e acertar o jogo com elas. O Alberto Fernández (presidente da Argentina) proibiu demissão por 60 dias.  Proibiu demissão. Chamou os empresários: "vem todo mundo para cá, ninguém demite ninguém, vamos negociar como a gente faz isso junto".

Blog – É mais prático do que ter que encontrar todo mundo que tem dinheiro para receber.

Haddad – É mais barato e mais racional você fazer um acordo com as unidades produtivas. Ninguém quer ver empresário quebrando. Tem empresa de 50 anos, de 20 anos, de 30 anos, que está na terceira geração. Gente competente, gente que tem condições de tocar um negócio, não é gente que está quebrando porque foi incompetente, porque foi especulador. Não, é gente séria. Então, você não vai desamparar essa pessoa. Só que você tem que dar condição para essa empresa, não só agora, durante a pandemia. Mas também no pós-pandemia. O que vai sustentar as empresas no pós-pandemia é a demanda. Se o consumidor estiver endividado, você não vai ter demanda. Então você tem que diferir no tempo. Se o nosso problema é de 60 dias, como parece que é, vamos diferir em 60 dias, o trabalho e o capital. Você joga tudo para frente. Não adianta a empresa ganhar 60 dias e o trabalhador não. Nós não vamos recuperar depois.

Blog – Ou seja, na sua opinião não adianta preservar o emprego do cara, ganhando menos, se ele não vai ajudar a fazer a economia girar depois.

Haddad – Não adianta preservar emprego e não preservar renda. Uma coisa tem que estar combinada com a outra. Você transforma cada unidade produtiva numa avalista da recuperação. E aí você sai. Agora, sabe qual é o problema?

BlogQual?

Haddad –  Tá tendo muita bateção de cabeça. Essa equipe é muito desastrada. Deixa todo mundo em pânico. A falta de coordenação, a falta de clareza do que fazer, a gente está a pé mesmo. Até hoje nós não temos um discurso oficial sobre o isolamento. É o único país do mundo que não tem um discurso oficial. É uma tragédia o que está acontecendo. É um siderado que está na presidência, ele não tem a mínima condição. É triste dizer um negócio desses, mas não tem.

BlogQue outras críticas você faz à Medida Provisória?

Haddad – Se aprovarmos essa medida provisória, vamos nos arrebentar. Ela é desequilibrada, nem vou perder tempo com o resto. Problema dela é desequilíbrio. Não adianta garantir emprego e não garantir renda. Não tem como isso dar certo, você vai terminar com 120 milhões de desempregados. Você vai querer retomar a economia e não vai ter como. Você mantém a saúde da empresa por 60 dias e depois ela não vai ter para quem vender. Porque, na hora em que sair todo mundo do isolamento, vai sair todo mundo sem renda.

Blog – Pela sua análise, teremos um cenário de quebradeira quando tudo isso passar?

Haddad – Você está adiando o problema e piorando a situação. Você vai ter daqui a 60 dias um cenário econômico pior. O que vai acontecer daqui a 60 dias? "Ah,todo mundo vai estar na rua". Todo mundo na rua fazendo o que? Correndo atrás de prejuízo para pagar dívida que acumulou no período. Nós vamos sair mais deprimidos, vamos demorar mais tempo para reativar a economia.

Blog Até que ponto você acredita que Bolsonaro não é mais presidente? (Nota do blog: Haddad tuitou que Bolsonaro não é mais presidente após pronunciamento dele pregando união com os governadores, um dia antes de voltar a atacá-los).

Haddad- Ele está ocupando a presidência, não está exercendo a presidência.

 Blog – Por que, não é ele que toma as decisões?

Haddad – Quem é que toma as decisões? A gente não sabe? Ele assina uma Medida Provisória num dia e volta atrás no outro. Ele bota o ministro para falar uma coisa num dia e desdiz no outro. Quem está mandando no país? A gente não sabe. Qual é a orientação?

Blog – Quais as três medidas mais importantes que você tomaria se estivesse na presidência para combater a pandemia?

Haddad – Eu disse há 15 dias (em coluna na Folha de S.Paulo) as quatro medidas que deveriam ter sido tomadas. Desde que foi reconhecida oficialmente a pandemia você teria que ter tomado quatro medidas: testagem em massa, proteção dos profissionais da saúde e da população, aumento dos leitos de UTI, porque se chegarmos nas situações de Itália, Estados Unidos e Espanha, eles não vão dar conta, e isolamento social com clareza. Nós ainda estamos tateando as quatro.

Blog – Uma pandemia expõe as fragilidades de uma sociedade. Do ponto de vista da gestão pública, a situação atual trouxe para você alguma nova visão, mudou o seu jeito de pensar algumas coisas?

Haddad – Acho que isso vai mudar o comportamento do país sobre o papel do Estado, sobre o que é de fato importante, acho que vai mudar esse obscurantismo. Antes ninguém ligava para a ciência, não sabia nem para que serve. Agora todo mundo espera uma solução da ciência, uma solução rápida.

Sobre o Autor

Ricardo Perrone é formado em jornalismo pela PUC-SP, em 1991, cobriu como enviado quatro Copas do Mundo, entre 2006 e 2018. Iniciou a carreira nas redações dos jornais Gazeta de Pinheiros e A Gazeta Esportiva, além de atuar como repórter esportivo da Rádio ABC, de Santo André. De 1993 a 1997, foi repórter da Folha Ribeirão, de onde saiu para trabalhar na editoria de esporte do jornal Notícias Populares. Em 2000, transferiu-se para a Folha de S.Paulo. Foi repórter da editoria de esporte e editor da coluna Painel FC. Entre maio de 2009 e agosto de 2010 foi um dos editores da Revista Placar.

Sobre o Blog

Prioriza a informação que está longe do alcance das câmeras e microfones. Busca antecipar discussões e decisões tomadas por dirigentes, empresários, jogadores e políticos envolvidos com o futebol brasileiro.