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Miguel Nicolelis sobre clássico durante pandemia: 'Dérbi? Mas que dérbi?'

Perrone

22/07/2020 04h00

Artigo escrito a convite do blog por Miguel Nicolelis, médico, professor, neurocientista e palmeirense sobre o clássico desta quarta (22) entre Corinthians e Palmeiras, na retomada do Campeonato Paulista.

Dérbi? Mas que dérbi?

Miguel Nicolelis

Médico, professor, neurocientista e coordenador voluntário do Comitê Científico do Consórcio Nordeste

Desde que me conheço por gente, por volta de 1966, o maior jogo de futebol, o maior dérbi do mundo, aquele que ocorre periodicamente, neste remoto e obscuro canto da Via Láctea, o confronto épico entre a Sociedade Esportiva Palmeiras, meu time do coração, e o nosso maior rival (e não inimigo), o Sport Club Corinthians Paulista, mexe com a minha vida de formas indescritíveis.

Dos confrontos épicos entre Dudu e Rivellino, das defesas espetaculares de Leão e Ado, Marcos e Dida, dos gols mágicos e inesquecíveis de César Maluco, Leivinha, Ademir da Guia, Ronaldo Artime, Evair, e Dudu, onde quer que eu estivesse no mundo, sempre parei para assistir cada milissegundo do dérbi como se fosse o último.

O que dizer da maior virada corintiana, ocorrida em 1971 (4X3, depois de o Palmeiras liderar por 2X0 e 3X1, com Adãozinho fazendo chover), narrada na voz de Fiori Gigliotti, enquanto eu e meu primo Fábio reproduzíamos o jogo, lance a lance, usando nossos botões, riscando a melhor mesa da casa da minha avó, sofrendo a cada grito de gol do rival, e nos abraçando, como se não houvesse amanhã, a cada gol do nosso amado Palestra Itália?

Como descrever os momentos em que eu tive que acompanhar a cobrança de pênalti de Marcelinho, contra Marcos, na semifinal da Libertadores de 2000, escondido dentro do vão da mesa do escritório na minha casa  nos Estados Unidos, por não conseguir olhar para a tela da televisão na hora agá?

Tudo isso enquanto meu filho mais novo me perguntava o que diabos estava acontecendo, e eu só conseguia dizer: isso é o que dérbi faz com a gente, Daniel, isso é o dérbi meu filho!

Daniel nunca entendeu o que eu quis dizer, especialmente depois de ver o pai quase sofrer um traumatismo craniano comemorando a maior defesa do século XXI naquela noite imortalizada na voz de Oscar Ulisses! Mas pudera, meu menino não entendeu nada porque ele nunca esteve no Pacaembu ou no Morumbi, apinhados de gente em cada centímetro quadrado, levado pelo Tio Dema, para assistir  a uma final do Campeonato Paulista, um dérbi que parou São Paulo por dias, antes e depois. Mas eu estava lá, em dezembro de 1974! Vendo o Pacaembu explodir com um gol para cada lado no primeiro jogo, no tempo em que corintianos e palmeirenses assistiam aos jogos lado a lado na arquibancada, no meu, no seu, no nosso Pacaembu! E depois, no domingo seguinte, num Morumbi abarrotado pela Fiel, testemunhar o maior silêncio que eu já ouvi num campo de futebol, quando Jair Gonçalves, substituto de última hora de Eurico (coisas de Oswaldo Brandão, o maior de todos)  cruzou a bola da intermediária, buscando a testa do Imperador Leivinha, o maior cabeceador deste lado do Sistema Solar, que com leve espanar da bola delicadamente deixou Ronaldo (o maior da história do dérbi, sorry Fenômeno) na cara do gol, para fuzilar um Butticce desesperado, que  até hoje não sabe por onde a bola passou! Quem viu isso, ou a final de 1993, jamais esquecerá o que o dérbi paulistano significa.

E apesar de tudo isso, de todas estas memórias maravilhosas, hoje eu não vou assistir ao dérbi, muito menos torcer desesperadoramente pelo meu amado Palmeiras. Pior, durante todos os últimos dias eu evitei ler, ouvir, ou comentar qualquer coisa sobre o dérbi que acontece hoje à noite na Arena Corinthians, por um campenonato que perdeu qualquer sentido de ser. E como eu poderia agir de forma diferente? No meio da maior tragédia humana da história brasileira – salvo o genocídio indígena promovido pelos europeus nos séculos XVI e XVII e a escravidão – que já custou a vida de mais de 81 mil dos nossos irmãos e irmãs em meros 5 meses, semeando dor, tristeza e miséria por todo este nosso sofrido Brasil, não era o momento de termos um dérbi.

De jeito nenhum, de forma alguma!

E eu não falo apenas do risco, muito real, a que todos que vão participar deste jogo fora de propósito serão expostos. Eu me refiro a uma outra dimensão ainda maior que parece  estar se esvaindo rapidamente no meu amado patropi. Em qualquer país com perdas humanas desta magnitude, que continuam a crescer na razão de mais de mil mortos por dia, pensar, muito menos voltar a jogar bola, não faz nenhum sentido. Nem do ponto de vista humano, nem do ponto de vista ético e moral, muito menos do ponto de vista esportivo. Afinal de contas, qual a mensagem que vamos passar aos nossos filhos e netos? Quem em sã consciência pode desviar seu interesse para assistir ou vibrar com um dérbi no meio de uma Pandemia?

Eu certamente não vou conseguir. Portanto, na quinta-feira, se alguém me perguntar, eu não terei dúvida alguma em responder que, para mim e espero que para muitos outros brasileiros, o dérbi que será disputado hoje jamais aconteceu. Ele simplesmente, não ocorreu. Porque admitir que este prélio foi disputado é aceitar que nós brasileiros realmente perdemos uma disputa muito mais fundamental: o confronto épico entre a empatia humana versus o time da total indiferença para com o próximo.

Sobre o Autor

Ricardo Perrone é formado em jornalismo pela PUC-SP, em 1991, cobriu como enviado quatro Copas do Mundo, entre 2006 e 2018. Iniciou a carreira nas redações dos jornais Gazeta de Pinheiros e A Gazeta Esportiva, além de atuar como repórter esportivo da Rádio ABC, de Santo André. De 1993 a 1997, foi repórter da Folha Ribeirão, de onde saiu para trabalhar na editoria de esporte do jornal Notícias Populares. Em 2000, transferiu-se para a Folha de S.Paulo. Foi repórter da editoria de esporte e editor da coluna Painel FC. Entre maio de 2009 e agosto de 2010 foi um dos editores da Revista Placar.

Sobre o Blog

Prioriza a informação que está longe do alcance das câmeras e microfones. Busca antecipar discussões e decisões tomadas por dirigentes, empresários, jogadores e políticos envolvidos com o futebol brasileiro.