'Futebol masculino pagar o feminino vai acabar', diz técnico do Corinthians
Perrone
07/06/2020 14h26
Entrevista com Arthur Elias, técnico do time feminino do Corinthians, campeão paulista e da Libertadores em 2019, além de vice-campeão brasileiro.
Como vocês estão trabalhando durante a quarentena?
Teve uma medida administrativa de dar férias pra todo mundo, então, a gente acompanhou, inclusive, o mesmo período do masculino. Mesmo nesse período, como a gente sabia que eram umas férias muito mais pela questão da quarentena, a gente prescreveu treinos diários para as jogadoras. Tem um acompanhamento que é feito com nosso preparador físico e com nosso fisiologista, com questionários também diários, que elas falam do treino, relatam para eles. E tem também um acompanhamento da parte nutricional, tem dois nutricionistas que nos auxiliam e eles entram sempre em contato com as jogadoras para acompanhar essa parte da dieta que é outro ponto importante. E outro ponto importante de apoio é a parte psicológica, que a psicóloga nossa também está acompanhando, inclusive fazendo umas atividades mais coletivas para distrair um pouquinho ali, pra ir para outro tipo de assunto e depois atendimentos individuais, quando se faz necessário. E, também, a parte técnica, junto com o analista de desempenho e o meu auxiliar, o que a gente faz são reuniões a cada dez dias, uma semana, com as jogadoras, a gente já fez com o grupo inteiro, mas as últimas têm sido com grupos bem reduzidos, de cinco jogadoras, e aí a gente desenvolve alguns temas.
Quais são esses temas?
São temas que têm a ver com a nossa maneira de jogar, com as nossas ideias de jogo, e que a gente passa para elas, através de material de vídeo, de quiz, umas brincadeiras que a gente faz com elas para elas responderem, e outras atividades. Elas analisam alguns vídeos comparativos às nossas ideias e alguns times, principais times do mundo, no futebol feminino, e aí gente vai comparando, vai discutindo futebol e tem sido muito legal a resposta do grupo, assim como sempre foi dentro do campo, o comprometimento. E você me perguntou, como foi, teve essa questão das férias, e agora tem se estendido, esse período que já não é mais férias, é um trabalho à distância.
Então, vocês estão usando muito a criatividade para passar a parte tática, que para algumas aletas, e isso acontece também no masculino, é mais pesada, mais difícil de prestar atenção. Você pode explicar melhor como são essas brincadeiras, que tipo de perguntas são feitas?
A gente fez com elas uma primeira apresentação, antes de apresentar, a gente enviou pra elas esse quiz, com algumas perguntas, sob parte conceitual desse momento do jogo, a gente com a bola, e elas responderam, mais para gente ver como estava o entendimento. O que a gente quer com isso? É conseguir melhorar, unificar a parte da nomenclatura, das questões do jogo, aproximar o pensamento de todas elas, entre elas e entre as ideias da comissão. Acredito que o trabalho é construído assim, o próprio modelo de jogo, entendo que ele depende totalmente da resposta das jogadoras. Então, elas constroem esse modelo junto comigo. Fizemos duas atividades de organização ofensiva. Depois, fizemos uma de transição ofensiva, que foi junto com a organização, que elas avaliaram os vídeos. A gente mandou os vídeos, elas avaliaram, e a gente discutiu através da avaliação delas. Depois, a gente fez outra atividade, de transição defensiva. Então, sempre contextualizando na parte mais conceitual, mas tentando levar para o olhar da jogadora, a parte prática. Elas viram vídeos nossos e vídeos de outras equipes, nesse sentido de comparar ideias. E aí elas vão trazendo as coisas. Como são grupos pequenos, todas participam. Entendo o que você falou, umas conseguem lidr melhor com isso, outras nem tanto, mas o grupo, numa maneira geral, a resposta é excelente. Claro que as atletas aprendem muito mais no campo do que à distância. O aprendizado no futebol é muito mais rico lá dentro. Elas são sinestésicas, elas precisam dessa questão do campo. Até porque tem o saber e o executar, então, elas estão preparadas para isso. Mas, elas aprenderem de outras maneiras também é rico pra elas.
Por causa da pandemia, o futebol, como praticamente todas as áreas, vive um momento de incerteza. Você tem conversado com a diretoria sobre futuro?
Então, eu tive uma conversa com o Andrés, converso muito com a nossa diretora, a Cris (Gambaré), e a gente entende. Todo mundo está vendo isso, é um momento difícil para o mundo inteiro, é difícil para o futebol, vai ter um impacto, a curto prazo, pelo menos. A gente espera que a médio prazo o futebol consiga retomar as suas receitas. Eu vejo que o feminino, a tendência é sofrer um pouquinho, como o futebol de maneira geral vai sofrer, mas hoje nós temos pontos mais consolidados. Houve muitas conquistas, por determinação da Fifa, inclusive. Então, vejo que a gente não é uma receita tão alta dentro dos clubes de futebol. Se você faz o futebol feminino com 1%, 2% do faturamento dos clubes grandes, por exemplo, você faz projetos grandes dentro da modalidade. Então é uma questão de saber administrar e dar o valor que o feminino merece porque esse discurso de que o masculino paga o feminino vai morrer por terra daqui a pouco tempo. Isso porque o feminino vai conseguir receitas próprias por esse entendimento, que é o entendimento da Fifa inclusive, de que você valorizando o futebol feminino, você valoriza a mulher no futebol. Se você valoriza a mulher no futebol, você dá a oportunidade de ela ser uma jogadora, uma profissional, uma treinadora, uma gestora, uma árbitra, você inclui a mulher verdadeiramente no jogo, você transforma a mulher também em consumidora. Vai ter uma cultura de valorização da mulher no futebol e isso vai fazer com que ela consuma futebol. Entendo que, prejuízos vamos ter, no curto prazo, mas, hoje a modalidade está muito mais consolidada, tem pilares muito mais fortes do que anteriormente. Quem entende como a Fifa, a médio e longo prazo, tem mais facilidade de desenvolver rápido. Às vezes, alguns não têm essa cultura, como aqui no Brasil, aí pode ser que existam algumas decisões, de alguns clubes, de algumas entidades que não sejam tão positivas, mas não vão ser devastadoras, tão prejudiciais para a modalidade, no meu entender, por causa de como a modalidade está. Mas, é óbvio, que times de prefeituras, que ainda são muito importantes, podem sofrer muito porque num momento desses o governo corta recursos.
Olhando para o futebol feminino de São Paulo, o sucesso do Corinthians acabou de uma certa forma puxando investimentos nos rivais, que tentam reagir. Mas, nesse momento, vem a parada por conta da pandemia. Por esse ângulo, a parada é um baque maior? Ela acontece num momento em que o futebol feminino em São Paulo poderia crescer mais?
Aí eu concordo com você. Esse é um sentimento hoje que todo mundo no futebol feminino tem. Porque o ano de 2019 foi marcante, foi marcante para a história do futebol feminino com a Copa do Mundo com um bilhão de pessoas, foi marcante pelo que a gente construiu, o Corinthians ter batido recordes mundiais, ter ganhado os títulos que a gente conquistou. Então, a modalidade teve muito mais visibilidade, deu muitos passos à frente. Esperava-se esse ano que esses passos continuariam sendo para frente. Então, digo que a gente não vai dar muitos passos para trás, mas, obviamente, com a pandemia, é difícil qualquer setor esse ano dar passos adiante. Realmente, fica essa frustração, mas também temos que ver que a sociedade como um todo perde muito.
Na sua opinião, o treinador que trabalha há muito tempo no feminino e que é vitorioso, como você é, pode ficar estigmatizado como técnico apenas do feminino que não deve ser contratado para treinar um time masculino?
Tenho certeza disso, é um fato. A gente sabe que sempre aconteceu essa espécie de preconceito por uma questão cultural nossa. A gente tem algumas questões no país bem erradas e essa é uma delas, a gente taxar as pessoas, taxar os profissionais. O feminino trouxe um ambiente de desenvolvimento para seus profissionais, então, aos poucos, está mudando esse modo de ver os profissionais e essa cultura de taxar: "esse só pode estar aqui, esse só pode estar ali".
Você tem o futebol masculino como meta?
Não digo uma meta, mas digo, assim, certamente vai ser um desafio que vai aparecer e eu vou encarar. Já tive algumas propostas para trabalhar com o futebol masculino, também para trabalhar com o futebol feminino fora do país e aí você precisa colocar na balança. Para mim, não é trabalhar dentro do Brasil ou fora, trabalhar no feminino ou no masculino. Tem um leque enorme entre tudo isso. O que eu valorizo é a condição de trabalho. Qual a condição e a perspectiva que o clube no qual estou vai me proporcionar. Todos os anos eu faço essa pergunta: "o que eu vou ter para o próximo ano, é melhor do que eu tenho esse ano? Qual passo vou dar?". E tem sido positivo, o Corinthians tem me dado excelentes condições, a gente tem correspondido, o projeto está crescendo e optei nesses últimos anos por essa continuidade. Mas o desafio do masculino é algo que vai fazer parte da minha carreira.
Na minha curta experiência com futebol feminino, aprendi que se você quer irritar uma jogadora, pergunte o que ela acha de diminuir o campo, o tamanho do gol e o tempo das partidas para as mulheres jogarem. Esse tipo de colocação também te incomoda?
Sim. Incomoda menos porque já estou acostumado. Entendo, são questionamentos, cada um tem sua opinião. Mas, quando você vai entender melhor o contexto, entender melhor como se dá a formação das atletas no futebol feminino. Ou melhor, não se dá, você não tem uma formação com estrutura. para trabalhar. Quando você começa a comparar o que se dá de oportunidade para os homens com o que se dá para as mulheres dentro do futebol, você vai ver que essa questão de diminuir o gol, o tamanho do campo, ela não cabe. Porque, quando você começa a dar condições melhores, o caminho tem que ser oferecer condições melhores para preparar a mulher para jogar no mesmo campo, no mesmo gol que os homens jogam. Em algumas modalidades, você precisa ter uma adaptação (para o feminino). O futebol, não. O meu time, eu trabalho com GPS, o meu time corre as mesmas distâncias do masculino. Qual o grau de diferença, às vezes? Em distâncias de alta intensidade, por exemplo. No masculino é um pouco maior. Isso tem a ver com a constituição do homem. Mas isso não é uma coisa que interfere diretamente no tamanho do campo. O feminino sofreu muitas críticas por causa das goleiras: "o gol é grande para o tamanho das goleiras". A questão não é o tamanho do gol, é a preparação que aquela goleira teve para jogar na posição. Isso está claro, pra mim é uma coisa tão óbvia. A goleira nunca teve um preparador de goleiros, aí ela chega para jogar. Isso há muitos anos, hoje está diminuindo. Vejo as minhas goleiras, com o pouco tempo que tiveram (de preparação específica), vejo o quanto elas evoluem em força, agilidade, técnica, em capacidade para defender o gol. E a própria jogadora para finalizar. Muitas chutam tão forte como no masculino, e para bater na bola não é só força, é técnica também. A técnica e a parte tática você vai aprimorar com o processo de formação adequado. Então, quanto mais a gente investir, dar oportunidade de formação, vivência de jogo… Quantos campeonatos as meninas tiveram. Quantas vezes falam que as meninas (da seleção brasileira) perderam jogos porque sentiram emocionalmente. Isso é injustiça. A questão não é emocional. É de prática, quantas vezes elas passaram por jogos decisivos? Quantos campeonatos elas disputaram? As americanas, por exemplo, jogam desde criança, estão competindo a vida inteira. E as nossas jogaram um ou outro campeonato antes de se profissionalizarem. Então, é uma questão de vivência.
Sobre o Autor
Ricardo Perrone é formado em jornalismo pela PUC-SP, em 1991, cobriu como enviado quatro Copas do Mundo, entre 2006 e 2018. Iniciou a carreira nas redações dos jornais Gazeta de Pinheiros e A Gazeta Esportiva, além de atuar como repórter esportivo da Rádio ABC, de Santo André. De 1993 a 1997, foi repórter da Folha Ribeirão, de onde saiu para trabalhar na editoria de esporte do jornal Notícias Populares. Em 2000, transferiu-se para a Folha de S.Paulo. Foi repórter da editoria de esporte e editor da coluna Painel FC. Entre maio de 2009 e agosto de 2010 foi um dos editores da Revista Placar.
Sobre o Blog
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